quinta-feira, 8 de setembro de 2016

O escritor que a gente escolhe. Por Jorge Ribeiro


Por Jorge Ribeiro

Li em uma deitada. Há livros que leio em pé. Para outros, sento-me. Porém, o primeiro conto de Somos mais limpos pela manhã, de Jorge Ialanji Filholini, pediu-me para deitar, já que minhas pernas tremeriam. Haveria peso na cabeça. A densidade fotográfica das descrições. O conflito explorado através de frases curtas e frases nominais; Certeiras. A poesia amarga. Precisei de um travesseiro. Trincheira para me proteger das balas que viriam das dezoito narrativas bravas, quase todas em primeira pessoa. E mudanças de foco narrativo com habilidade de músico que sabe muito bem como alterar a direção do ritmo, da cadência e provocar espanto no leitor que é convidado, já nas primeiras páginas, a lavar as mãos antes de se matar.
Os personagens de vida bruta incomodam com ironias e metáforas inusitadas. De saída, um deles trai o amigo. Afirma que é o irmão que a gente escolhe para dar aos porcos e tranquilo vai ferver o óleo para fritar batatas. Uma primeira mordida no fígado de quem lê.
O leitor quer respirar, mas o livro não deixa. Apresenta a evangélica que anseia por um portão eletrônico, o dente que faltava em sua casa, mas ela nem carro tem. Neste entrecho, diferentes nuances de significados zombam da realidade, caçoam da ingenuidade que muitas vezes se apresenta quando que se misturam dinheiro é fé.
As histórias seguem tornando o ar rarefeito. Apresenta-se um pai com sua promessa de vingança pela morte do filho. Vingar-se será a roupa com que ele vestirá o menino que estava preparando um zine, mas os poemas agora são a sua obra póstuma. Bosta e moscas num banquete de raiva.
A dor e a tortura continuam; uma família mostrada através das ácidas lembranças de um narrador que insiste em falar da covardia de seu pai. Sobre seus pais, ele diz, então, que frequentavam o mesmo lar, mas não compartilhavam o mesmo sono em uma casa que já ensaiava a falta da família. Continuam as mordidas cheias de precisão.
Vem mais desconforto na página que se segue. A angústia de um personagem que odeia o anonimato e não se conforma com o fato de não ser visto na Avenida Paulista, apesar de tão popular nas redes sociais, com milhares de curtidas. A morte espia entre as linhas.
No conto Mataram o narrador, surge a metalinguagem para falar ironicamente da arte de escrever. O narrador pede aos escritores que parem de maltratá-lo; quer ser utilizado até o fim ou que o avisem quando deve sair de cena. Ele diz que não gosta de literatura e prefere falar de filmes, mas discorre sobre autores e livros com humor e perspicácia. O mundo da escrita rasgado em poucas linhas, com cutucadas e safanões naqueles que fazem literatura morna.
Em Senhor H, o personagem que tem excelente memória não consegue se lembrar da senha de seis dígitos, desiste, abandona o banco e viaja em direção à consciência. Na construção dos diálogos, habilmente o autor conduz a narrativa para a surpresa do desfecho.
No conto seguinte, If You Can’t Say Something Nice, incesto, sexo e morte.Continuam os tiros, as mordidas.
Depois, o neto que passeia com a avó para quem ficar em casa só lhe faz contar as horas para morrer. O discurso da avó é uma história de ingenuidade e de abandono.
Na continuação do livro, há sangue no conto em que uma filha desconhecida aparece de repente ao pai que nem consegue se lembrar do lugar em que ela teria sido concebida. Um conto narrado em pequenos capítulos em que o desamor se apresenta em cenas incisivas.
Em As Sete Borrachadas, há o discurso azedo de um retirante, morador de rua, e sua incômoda relação com a polícia.
Vem, então, a história de uma suicida, morta na mancha da própria urina; o narrador ironiza, ao afirmar que quem está morto não precisa pagar a diária.
No conto que dá nome ao livro, o carnaval na rua, o pai moribundo no hospital e as recordações do narrador. As imagens, aqui, apresentam-se como cenas de um filme, em um enredo onde é citado o grande Geraldo Filme.
O conto Faz de si vem com maconha e pensamentos de um homem num quarto de pousada. As ideias passeiam bastante, mas não há saída alguma.
Na próxima narrativa, o personagem taxista revoltado com os ciclistas. Discurso de ódio. Precisão de linguagem para fotografar uma distorcida realidade.
Em seguida, o relato de um traficante que deseja abrir uma funilaria e mudar de vida. Mas as histórias que conta revelam a impossibilidade de seu desejo se realizar.
O conto A última batalha mostra aspectos da vida de um poeta guerrilheiro e a expectativa um pouco antes de uma homenagem póstuma. Conteúdo que espanta e emociona.
No último texto, uma espécie de crônica com uma divertida e estranha lista de desejos. Todos eles são apresentados sem comentários. Apenas o desejo de ser escritor revela estranhamento através de uma voz que surge com uma pergunta na última linha do texto.
Antes de encerrar o livro, há um boa-noite e uma advertência: No fim do mundo vire à esquerda.
Com o livro lido, eu não estava mais limpo, mas, sim, contaminado pelas balas que saíram da boca do narrador e me atingiram sem piedade. Passei o dia zonzo com o tempo, a ação, o espaço, os conflitos e a unidade narrativa dos contos, configurando a cosmovisão do autor. E seu jeito de mostrar o mundo é o descortinar das violências e dos danos nas relações humanas.
Jorge Ialanji Filholini é um autor que já estreia fazendo gol de letra.